Escreve João Paulo Guerra, no Diário Económico: "Para além do género e do penteado, a única essencial diferença entre José Sócrates e Manuela Ferreira Leite é que um está no poder e a outra esteve".
O Bengalão sabe que JPG, na altura gloriosa do Tempo Zip, não era economista. Mas a economia é maleita contagiosa, um pouco como a poesia, de que Cervantes dizia "soy poeta, que es enfermedad pegadiza". E, assim sendo, JPG é, para todos os efeitos práticos, um economista. O Bengalão protege-se sempre, quando lê JPG, como se deve fazer para evitar contágios. Vinda de quem vem, a prosa de JPG suscita algum espanto e três comentários. O espanto vem do facto de um economista falar de uma diferença essencial. Pois quê? Então os economistas abandonaram a cavacal secura da sua posição hierática para se dedicarem agora à percepção de algo tão volátil como uma essência? Pois não lhes basta já aquilo que, com a subtileza de um rolo compressor, conseguem reduzir à plana beatitude dos números unidimensionais? Essencial, JPG? Que bicho te mordeu, JPG? Estaremos, como diria o Ingenhêro se alguma vez tivesse lido Eduardo Lourenço, perante uma mudança de paradigma? Um economista é um ingénuo que pensa que a economia é uma ciência exacta e que a matemática é outra coisa que uma linguagem. Acham que a matemática é uma mantra que permite achar a verdade. Um economista é um bufarinheiro que dá, de uma passadeira rolante, a seguinte definição: Seja No a cota de partida de uma escada rolante ascendente e N1 a sua cota de chegada. Seja X=N1-N0. Uma passadeira rolante é uma escada rolante ascendente tal que X=0. Essencial, JPG?
Para além do grão espanto, O Bengalão tem três comentários a fazer. O primeiro é que lhe parece abusivo dizer que a juntar à diferença "essencial" que JPG julga ver, haja uma diferença de penteado. O penteado do Ingenhêro e o da Contabilista não são muito diferentes. A O Bengalão parecem até quase idênticos. O Bengalão sabe que há, na cabeça da Contabilista, mais volume do que na do Ingenhêro. Mas os dois penteados são, como direi, essencialmente iguais. O topete da pita gótica que arvora a pluma vertical e negra do cabelo com o mesmo desplante com que exibe o pin no lábio é essencialmente diferente do betão armado do penteado da Dra. Manuela Eanes. O cabelo rapado da enfermeira do Instituto de Oncologia que sente a necessidade visceral de se parecer com os seus doentes é humana e essencialmente diferente do capachinho do Dr. Fernando Gomes. Agora o Ingenhêro e a Contabilista? (Intervalo. Há muitos anos, O Bengalão costumava contar às suas filhas histórias que ia inventando à medida que as contava, mas que começavam sempre por: "Era uma vez um urso e uma tirolesa". O Bengalão promete que há-de contar aos seus netos histórias por medida e que comecem por "Era uma vez um Ingenhêro e uma Contabilista". Ouviram, meninas? Ao trabalho, que se faz tarde!). Penteados diferentes, os do Ingenhêro e o da Contabilista? Ai, JPG, JPG...
O segundo comentário tem a ver com a conclusão, muito portuguesa, de JPG. Para JPG e, sejamos justos, para a maioria dos Portugueses, o poder é um lugar, quase um logo, em que se está. O Governo, o Parlamento e outros orgãos da República deviam estar, não em Lisboa, mas numa lindíssima aldeia perto de Coimbra que se chama Logo de Deus. E perguntar-se-ia assim: Onde está o Ingenhêro? Está no poder. Ou seja, no Logo de Deus. Mas o poder não é um lugar. O poder tem-se. A Contabilista tem poder. O Ingenhêro também. Têm pouco, mas têm. Nenhum deles tem tanto como o Tio Belmiro. E nunca teve. O Durão não tem poder nenhum. O Santana nunca teve. O Pinto da Costa tem mais poder do que o Rui Rio. O pensador Marcello julga que tem poder. O Cardeal Patriarca também. Estar no poder, JPG?
O terceiro comentário é sobre aquilo a que JPG chama a diferença de género entre o Ingenhêro e a Contabilista. Claro que JPG estudou o livro de estilo do politicamente correcto e sabe que é género que se diz, não é sexo. Mas O Bengalão, que não tem que respeitar essas regras espúrias, permite-se algumas observações sensatas. Queiram ou não queiram os Grandes Inspectores (e Grandes Inspectoras, claro) da correcção política, o Ingenhêro e a Contabilista são de sexos diferentes. Se são de géneros distintos ou não está sujeito a discussão. Antes que se pense que O Bengalão é um machista inveterado, que não entende a subtileza da distinção entre género e sexo, declara desde já O Bengalão que tem lido os seus Autores, percebe bem a diferença e está de acordo com a necessidade de designar de maneira desigual o sexo biológico e o sexo social. O Bengalão leu o Deuxième Sexe, e acha que essa distinção, aí inaugurada (em 1949!!!), é um avanço muito importante na civilização humana. O problema não é esse. Trata-se apenas de um problema de designação. Na sequência do conceito de Simone de Beauvoir, sociólogas e feministas americanas propuseram, para traduzi-lo, a palavra inglesa gender. A palavra gender, para um anglófono, é uma boa escolha. Em Inglês, gender significava, antes do fim da década de 1950, quando, pela primeira vez, a palavra foi usada para traduzir o conceito beauvoiriano, duas coisas: tipo e, mais restritivamente, o que, em Português, se designa por género gramatical. O Bengalão, que não perde uma oportunidade de mostrar os seus conhecimentos (La culture est comme la confiture: moins on en a, plus on l'étale), acrescenta que gender já significou sexo, tendo sido ainda usada, até ao princípio do século XX, nesse sentido, em tom irónico, e, até ao século XVII, significava mesmo prole. Ora, com o uso de gender, expurgava-se o conceito de conotações biológicas, ilustrando a diferença em relação a sex, usando um termo muito abrangente e, portanto, neutro e, além disso, acentuava-se o carácter convencional (como são todos os conceitos gramaticais), ou seja, não natural, da designação. É evidente, para quem não seja Licenciado pela Universidade Independente, que a escolha é boa em Inglês, e em qualquer língua que cumpra duas condições: primeiro, que tenha dois géneros totalmente, ou quase totalmente, coincidentes com os sexos; segundo, que a palavra que designa o que em Inglês se chama gender, não tenha outros significados que prejudiquem a adequação ao conceito. Quanto à primeira condição, o Inglês cumpre-a quase perfeitamente. Tem três géneros, o neutro para quase tudo e o masculino e o feminino, paralelos, com algumas notáveis excepções (navios e países, por exemplo, que são ambos femininos), aos dois sexos tradicionais (O Bengalão diz tradicionais para se precaver de alguma reacção menos gandhiana de algumas pessoas). Quanto à segunda, o cumprimento é evidente.
O problema é que há poucas línguas que tenham a mesma distribuição de géneros do Inglês. O Bengalão não conhece nenhuma. Em Português, se é verdade que o sexo feminino é do género feminino e o masculino do masculino, é também verdade que a ausência do género neutro (pelo menos nos substantivos, diz O Bengalão, que é um snob, quando fala de gramática) impede o paralelismo entre género e sexo. Em Alemão, que tem neutro, uma das palavras que quer dizer mulher é neutra, mesa é masculino e quadro feminino. Em Finlandês não há género (O Bengalão não tem experiência pessoal que lhe garanta que há sexo, mas deve haver) e, nalgumas línguas bantu, há vinte géneros, nenhum dos quais tem a ver com sexo. A segunda condição é ainda mais problemática. A palavra género, em Português, além de significar o que gender quer hoje dizer em Inglês, significa também o que em Inglês se designa por genus, ou seja, o taxon que, hierarquicamente, está acima da espécie. Diz-se assim que a espécie Rosa foetida (existe mesmo e cheira mesmo mal) pertence à secção pimpinellifoliae do subgénero eurosa do género rosa. Em Português, assim, a palavra género não serve para traduzir o conceito que aqui está em causa. O Bengalão espera que as feministas portuguesas imaginem a palavra certa. Seria pena que as mulheres, que, durante milénios foram tratadas como se pertencessem a uma espécie diferente da dos homens, defendessem agora que nem ao mesmo género pertencem.
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