domingo, 15 de março de 2009

Irlanda

O Bengalão tem estado à espera. Desde que começou a crise que O Bengalão tem estado à espera. Como um predador à espera da presa. Mas, Leitor, em tempo de crise, todos temos o dever de nos concentrarmos no essencial. Mesmo O Bengalão, apesar da da sua proverbial verborreia. Está o Leitor a pensar que nenhum predador passa 2 meses e tal à espera de que passe presa ao alcance do dente, parado, totalmente entregue à vontade de um deus qualquer (e agora, espantem-se gentes, O Bengalão vai citar, entre todos os possíveis citáveis, João Paulo II), "totus tuus", quer dizer, ou me dás de comer ou morro, vê, Senhor, aonde vai a minha fé.

Ora O Bengalão não tem culpa de que o Leitor, entre os milhares de Universidades que iluminam, com a sua sapiência, as plagas lusitanas, tenha escolhido para alma mater (alma mater quer dizer, mais ou menos em Inglês, "Instituição que, à custa de muito esforço, do pagamento de algum dinheiro pouco claro, e de algumas cunhas bem colocadas, conseguiu ensinar-me a fazer contas (menos as de dividir) e a ler os títulos do Correio da Manhã") exactamente a Universidade Independente, cujos alunos são os únicos a não conhecer a Bitis Gabonica. Ora, como sabe quem fez a quarta classe bem feita, a Bitis Gabonica é conhecida, em vernáculo, por víbora do Gabão e é a maior víbora do planeta, depois de alguns senhores venenosos que representam, em África, os interesses da BP, da Total, da Galp, da Shell, e de comerciantes de outros produtos particularmente apreciados, incluindo os escravos e o café. Estes representantes são habitualmente conhecidos pela alcunha "Presidente da República".

Perguntarás, Leitor, o que tem a simpática víbora a ver com O Bengalão? O Bengalão tem mordido no Ingenhêro e ele lá continua, vivo e são. Fosse O Bengalão a Bitis e era um ar que lhe dava, funeral nacional, doutoramento póstumo honoris causa e salva de nove tiros no Panteão de Alcochete, para alguma coisa havia de servir o Freeport. O que tem a víbora com isto, então? Tu, Leitor, que já perdeste poupanças e reforma, não percas também a paciência. Como a crise vai mostrar, a paciência é uma virtude cada vez mais necessária. Dantes, antes do Velho tropeçar na Cadeira, havia muitos pobres que batiam às portas a pedir. Dava-se esmola a uns, a outros não, dizendo-se a estes: "Hoje não pode ser...Tenha paciência..." E O Bengalão não se espantaria nada se, nestes tempos de governação socialista e modernaça, em que a caridade, que horror, seria uma forma intolerável de distribuição da riqueza, fosse criada, na dependência directa do Primeiro-Ministro, a Secretaria de Estado da Paciência, sob a responsabilidade de António Guterres, do Padre Melícias, ou de Teresa Costa Macedo, encarregada de dizer, em não mais de meia hora, "Tenha paciência" com elegância e comiseração.

Ora, voltando à víbora, além do seu tamanho descomunal, da sua rapidez fulminante e do seu veneno digno de um Marcello, outra coisa faz a Bitis de mor espanto, como diria o Vate (Não, Ingenhêro, vate não é um verbo e não é normalmente seguido de um palavrão, pergunta à Estrelinha que te guia, ela sabe). A víbora do Gabão, espantem-se, gentes, depois de comer como uma abadessa e de se meter numa cova funda, é capaz de fazer uma sesta que pode durar mais de dois anos. Dois anos, Leitor. Dois anos a aboborar, Senhores Abades. Dois anos a dormir, Senhores Deputados. E não se limita à sesta a habilidade da cobra. Longe disso. A dormir, a Bitis reduz ao mínimo o seu metabolismo, a sua temperatura matem-se baixa, a frequência cardíaca é tão baixa que mal se nota. Mas basta que lá fora, a 10 metros da víbora, passe um rato ou outra criatura a que goste de chamar um figo, para ela acordar, saír, quase por desfastio, da sua letargia e, ala que se faz tarde e o almoço está na mesa, saltar sobre a presa e engoli-la. Para entenderes bem, Leitor, é como o Santana. Venenoso e lépido, salta sobre qualquer pedacinho de poder que lhe passe perto do dente. Foi Presidente da Câmara de Lisboa e fez os Lisboetas deixarem de se preocupar com os buraquitos dos passeios e das ruas, tal o tamanho do buracão financeiro em que meteu a cidade. Foi Primeiro-Ministro, acorda, Sebastião José, vem ver o que fizeram do teu cargo, e ainda hoje retinem, por essa Europa fora, as gargalhadas e o espanto. Com o bucho cheio do seu petisco preferido, o poder, assim mesmo, sangrento e cru, meteu-se no buraco, a aboborar. Também lhe deram uns empregozitos em Empresas Públicas, quer dizer, Leitor, deste-lhe tu mais umas avencitas e uns salariozecos, para ele palitar os dentes. Estava ele, letárgico e gordo, no seu buraco de S. Bento, passou-lhe perto uma liderança parlamentar. E zás, levanta-te, Santana, papou-a. E pejo não teve em regurgitá-la, para fazer lugar a quê, Leitor? À Câmara de Lisboa. É o ciclo vital o Santana. Que deve, aliás, ser urgentemente incluido entre os programas do Magalhães, depois de devidamente revisto pela Estrelhinha que guia o Ingenhêro, para ensinamento e elevação das gerações futuras.

Estarás talvez, Caríssimo Leitor, a perguntar-te: Mas que tem isto a ver com a Irlanda? Na Irlanda nem há cobras...

Pois a ligação é evidente. Disse-te O Bengalão, no início deste texto, que tem estado à espera, como a víbora, com a paciência de um predador. Não te disse O Bengalão de que tem estado à espera. Pois O Bengalão tem estado à espera da Irlanda.

Não, Leitor. Não invadiram O Bengalão súbitas saudades da Calçada dos Gigantes, ou das harpas dos pubs de Cork, ou de uns certos olhos verdes que viu uma vez, de passagem, em Dublin, ou do mar, do mar da Irlanda, do mar que parece ter sido inventado para dar sentido ao verde da terra, ou da compota de laranjas feita num certo convento da costa Oeste, ou das ostras fumadas do porto de Dublin, ou de tudo o resto que faz d'O Bengalão um apaixonado da Ilha de Esmeralda. Não, Leitor. O Bengalão, que é um sentimental, está sempre cheio de saudades. Saudades de terras e de pessoas. Às vezes, chega a ter saudades das pessoas com quem está. Chega mesmo, aprecia, Leitor, porque é raro que O Bengalão fale de si, a ter saudades de pessoas que não conhece e de terras a que nunca foi.

Dá-se o caso de, há uns meses, antes da falência do Lehmann Brothers, a Irlanda ser citada a torto e a direito. O Ingenhêro falava da Irlanda como se bebesse Guiness desde pequenino. A Contabilista era tu cá tu lá com a Irlanda, do género, o Governo faria melhor se, em vez de...(seja o que for), resolvesse os problemas dos Portugueses. Pusesse o Governo os olhos na Irlanda e tudo correria melhor. O Senhor Presidente da República, ele próprio, não deixava de citar a Irlanda quando falava de sociedade do conhecimento e dos serviços. Os jornalistas, comentadores, professores de Economia, falavam da Irlanda três vezes em cada frase. Em quase todos os debates na TV, todas as frases começavam "Na Irlanda, por exemplo..."

Ora O Bengalão que, ao contrário de muitos dos que falavam sobre a Irlanda, conhece a Irlanda, desde o início, como diria Boyle Roche, smelled a rat. O Bengalão sabia que era verdade que a Irlanda, ao contrário de Portugal, tinha aproveitado o dinheiro da Europa para fazer sistematicamente formação profissional. Na Irlanda, o Fundo Social Europeu não foi o regabofe a que assistimos aqui. Na Irlanda, não terá havido casos como o daquela Câmara Municipal de Trás-os-Montes que organizou um curso de formação profissional de pescadores, no tempo de um primeiro-ministro de cujo nome O Bengalão agora não se lembra, era Aníbal qualquer coisa, a memória d'O Bengalão já não é o que era. O Bengalão sabe que, na Irlanda, não se gastou dinheiro da Europa a fazer IP's que duraram menos de dez anos, porque foi necessário depois fazer-lhes autoestradas por cima. O Bengalão sabe tudo isto muito bem. Mas também sabe que, em grande parte, o desenvolvimento da Irlanda se deveu à vontade de Clinton, que quis ficar na história como tendo resolvido a questão da Irlanda do Norte e, portanto, incentivou os americanos de origem irlandesa a investirem muito dinheiro na ilha; e que, em grande parte, o desenvolvimento da Irlanda se deveu à necessidade que os produtores americanos de computadores, principalmente a Dell, sentiram, pela legislação proteccionista que existia na Europa nessa altura, de um país europeu de língua inglesa para produzirem os seus computadores "europeus".

O Bengalão sabe isto. Assim sendo, O Bengalão nunca fez da Irlanda um exemplo. Deve ter sido o único. Por isso O Bengalão esteve à espera. À espera de que agora, que a economia irlandesa foi pelo Liffey abaixo (o Liffey é o rio de Dublin, Ingenhêro), todos estes senhores, os ministros, os deputados, o Ingenhêro, a Contabilista, o Paulinho, os economistas, os jornalistas, os comentadores falassem agora da Irlanda. E nos explicassem o que correu mal. Mas não. Estão, como se diz na Irlanda, mute as a salmon.

Mas o seu silêncio é gritante. Pelo menos sabemos agora onde estaríamos se tivéssemos seguido os seus conselhos, ou se eles tivessem querido ou sabido levar-nos para onde diziam que devíamos ir. Pelo menos um deles sabe umas coisas de economia. Camilo Lourenço, um dos grandes comentadores portugueses de Economia, que, ainda há uns meses, tinha mais vezes a Irlanda na boca do que os Irlandeses têm a Guiness, acaba de publicar um livro com o sugestivo título: Como esticar o salário e encurtar o mês. O livro tem sido um enorme sucesso editorial. O que mostra que o Camilo Lourenço pode não nos explicar como e por que andou tantos anos enganado, mas saber de economia, sabe. Olá se sabe.

1 comentário:

com senso disse...

Caro Bengalão.

Ainda bem que regressou ao convivio dos Leitores, que decerto devido à ausência destas estimadas bengaladas por tão dilatada temporada, estariam já, quais Bitis Gabonicas, adormecidos no seus protegidos buracos.

Foi o meu caso, em que só três semanas após o seu regresso, me apercebi que tinha voltado.

Confesso que tenho um sono pesado e que o meu olfacto anda um pouco fora de forma!

Entretanto, eu que nunca estive na Irlanda, sempre achei muito curioso que se considerasse que um país que mostrava estatisticamente um aumento enorme das diferenças sociais, a par de um crescimento elevado do PIB, fosse considerado um exemplo para quem quer que fosse.
Dado que em tempos muito idos cursei Economia, ficou-me sempre na memória uma distinção que os mestres nos ensinavam na época: Uma coisa era crescimento, outra era desenvolvimento.
Na verdade para crescer basta produzir mais, capitalizar mais as empresas, fazer aquilo que os seguidores do Karl e do Friedrich chamavam de acumulação de capital.
Para desenvolver, contudo haveria que repartir os ganhos desse capital, dando mais igualdade social, mais educação, mais actividade cultural, mais qualidade de vida na saúde e no ambiente.
Numa pressupõe-se que a riqueza das sociedades, está na riqueza das Empresas (que aqui se ia apelidadando ora de saúde, ora de competitividade), sendo as políticas sociais usadas como instrumento de incentivo à produção.
Noutra serão os cidadãos, enquanto seres humanos e não enquanto peças de uma engrenagem, o objecto último do empenho e dos esforços da sociedade (coisa aliás já tentada com sucesso nos reinos nórdicos, mas cuja política fiscal faz bastante urticária aos nossos políticozinhos).
Os empresários gostam mais de uma do que de outra. Os teoricos do neo-liberalismo, que lhes prestam serviço, também!
Os que não têm ideias para além do curto-prazo, acabam iguallmente por ler apenas por essa mesma cartilha.
Por isso, talvez agora o silêncio salmonar de Ingenheiros, Contabilistas e de seus predecessores sobre a Irlanda e os seus feitos.
Gostei, como sempre, desta óptima bengalada dirigida a vários e certeiros alvos!
Parabéns e espero que continue com a sua bengalar presença neste espaço de lucidez!