quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Jogos Olímpicos

O Bengalão também está, como toda a gente, imbuído do espírito olímpico. Deu, por isso, aos Jogos, toda a atenção que eles mereciam.

Os Jogos começaram há muito tempo, na altura em que o Comité Olímpico Internacional decidiu entregar a Organização a Pequim, ou Beijing, como parece que se escreve agora (foi precisa uma Olimpíada para O Bengalão dar fé de que Portugal tinha assinado um acordo ortográfico com a China). Nessa altura, muitas organizações de defesa de direitos humanos declararam-se chocadas por os Jogos se irem desenrolar num país em que os direitos humanos estão muito longe de ser respeitados. Algumas personalidades apelaram mesmo ao boicote, se não dos Jogos, pelo menos da cerimónia de abertura. Ergueram-se logo algumas vozes para dizerem que o boicote não se justificava, que os Jogos eram uma maneira de levar os chineses a aproximarem-se dos padrões da "Comunidade Internacional", que andaram os atletas tantos anos a prepararem-se para agora não competirem-se, imagine-se o desperdício. Com o tom lapidar que usa quando quer brincar aos Estadistas, Durão Barroso declarou que nenhum boicote se justificava, porque "não podemos excluir 1/4 da população mundial". Durão já nos tinha dado provas da sua tocante ingenuidade, quando, a propósito da guerra contra o Iraque e da existência de armas de destruição massiva, teve a oportunidade de dizer, com os olhos arregalados como as crianças quando mentem: "As provas existem. Eu vi-as." A sua declaração sobre os Jogos demonstra o mesmo grau de perspicácia. O Bengalão teria preferido que Sua Excelência tivesse esclarecido qual é o número mínimo de habitantes para que um país não possa ser excluído destas festividades. Quer dizer, dando de barato que Sua Excelência tem razão, será que, se os Jogos fossem na Índia, menos populosa do que a China, mas mesmo assim um formigueiro imenso, os poderíamos boicotar, por causa das castas e outros vícios menores? Ou, sendo os Indianos ainda muitíssimos, poderíamos boicotar os Paquistaneses? Os Russos (bem, esses já foram boicotados)? Ou os boicotes só são admissíveis se forem exercidos sobre países pequenos, de preferência sem grande comércio externo e com um exército diminuto? Por exemplo, se o Vaticano (ditadura teocrática em que não há liberdade sindical, nem liberdade de culto, nem eleições livres e em que as mulheres são claramente descriminadas) se atrever a querer organizar as Olimpíadas de 2024, a sanha boicotadora de Durão será impiedosa. Agora a China não. Não podemos excluir um quarto da humanidade, Durão dixit. Primeira medalha de ouro, e os Jogos ainda nem tinham começado.




A segunda medalha de ouro ficou em casa. Ganhou-a, com garbo, o Presidente do COI. Algumas ONGs, preocupadas com o aparente nihil obstat, como diria o Ingenhêro se tivesse estudado em Inglaterra, porque eles, na pérfida Albion, ainda estudam Latim, dos governos ocidentais aos seus amigos chineses resolveram propor aos atletas da União Europeia o uso de emblemas com frases de defesa de princípios que os políticos europeus costumam classificar de sagrados e universais. O Senhor Presidente, preocupado com o bem estar dos seus homólogos chineses, veio a terreiro declarar que isso seria inadmissível, que os Jogos nada têm a ver com a política e outros argumentos do género que nos fizeram recordar outros momentos em que o COI

os utilizou de modo igualmente infeliz. Alguns de nós, mais convencidos da importância da memória, recordam-se de como o COI concedeu a organização dos Jogos a Berlim, apesar de a Alemanha não querer que atletas judeus ou negros participassem nos Jogos. E os atletas, em Pequim, não puderam usar sequer um emblemazito a dizer I love human rights, para não ofender a China, nem sequer I love human, para não ofender os defensores dos animais, nem mesmo I love, para não ofender o Papa, e muito menos I, para não ofender os pouquíssimos antiliberais que ainda subsistem no Partido Comunista Chinês. Segunda medalha, ainda os Jogos estavam no adro.




O Bengalão começou por dizer que deu aos Jogos a atenção que eles merecem. O Leitor, que por estes tempos já terá notado que a precisão de linguagem é apanágio d'O Bengalão, não terá daí inferido que O Bengalão passou noites insones, de olhos abertos à força de muito café, a olhar para a televisão, seguindo as peripécias de um emocionante jogo de softball, tentando adivinhar, o melhor que podia, o que se passava debaixo de água num jogo de polo aquático, ou vendo uns senhores, artificialmente zarolhos, a tentarem ficar o mais quietos possível para depois, ao toque de um apito, desatarem aos tiros contra um alvo que lhes não tinha feito mal nenhum. Claro que não. O Bengalão deve confessar que não viu, em directo, uma única prova. Viu, nos telejornais, alguns resumos e o salto do Nelson Évora. Também ouviu a entrevista do Marco Fortes. O resto dos Jogos, O Bengalão acompanhou-os através das cartas dos leitores do Público. (Repara, Leitor, que O Bengalão distingue entre ti, Leitor, e os meros leitores do Público). Ou seja, O Bengalão deu aos Jogos Olímpicos a atenção que eles merecem.



O que O Bengalão leu nas cartas dos leitores, não fosse O Bengalão um homem cosmopolita, que se sente à vontade de Forno Telheiro ao Terreiro das Bruxas, de Gonçalbocas a Vale de Lamula, ter-lhe-ia provocado um espanto do qual demoraria anos a recuperar. Em primeiro lugar, queixam-se os leitores das declarações de Marco Fortes. Sabes quem é o Marco Fortes, Leitor? É um grandalhão, de pele pigmentada (estás a ver como O Bengalão também é capaz de ser politicamente correcto?), que tudo destinava a andar aos tiros na Quinta do Mocho e que, em vez disso, é recordista nacional do lançamento do peso e já ganhou algumas medalhas para Portugal. Desta vez, lançou o peso a 18,05 metros, mais de 2 metros abaixo do que é capaz de fazer, mas mais de meio metro acima do salto do Nelson Évora. Para se ter uma pequena ideia do lançamento do Marco, se ele estivesse à porta d'O Bengalão, atirava o peso até quase ao meio do jardim, depois de atravessar a casa toda. É obra. O Bengalão, se a Mulher da sua vida o deixasse experimentar, chegaria, no máximo, à entrada da cozinha. O Bengalão não pode, portanto, deixar de admirar o Marco.
E o que declarou o Marco? Pois declarou que, à hora em que foi a prova, ele se sentia bem era na caminha. E O Bengalão confessa que sentiu alguma ternura ao ver aquele grandalhão que, se para aí lhe desse, com uma só bofetada levava O Bengalão à glória, confessar, com um sorriso de menino, que, às oito da manhã, o que lhe apetecia era Vale de Lençois. O que tu foste dizer! Houve logo quem escrevesse para O Público, a dizer que era inacreditável, que pagava os seus impostos, que se deitava às cinco da manhã e os atletas, como é que lhe pagavam? Pois nem uma medalha, e, ainda por cima, com gracejos pouco dignos de profissionais. A'O Bengalão parece-lhe que está a vê-lo. O Paulo Alexandre, de fato treino roxo e cabelo ainda molhado do duche domingueiro, vira-se para a filha, antes de saírem todos para o passeio ao Centro Comercial: Oh Carla Vanessa, diz à tua mãe que ponha umas bejecas no frio, que logo faço serão! Fazes o quê? pergunta o rebento, que não tem jeito para línguas, Faço serão, fico acordado até tarde, hoje dá atletismo e pode ser que aqueles morcões ganhem a minha medalhita. Já não é sem tempo. A Carla Vanessa não percebe bem o que o pai quer dizer mas, como quer ir ao Centro ver se já saiu o novo telemóvel, lá vai dar o recado à mãe. Algumas horas e muitas minis mais tarde, o Paulo Alexandre está indignado e escreve para O Público.
Como se isto não bastasse, o Presidente do Comité Olímpico de Portugal, expulsou o Marco de Beijing e fê-lo regressar a Portugal, com uma crueldade e falta de diplomacia que indignaram O Bengalão. E O Bengalão, se tivesse uma palavra a dizer, não deixaria que o seu dinheiro servisse para pagar as despesas e outras prebendas do Senhor Presidente.
Toda esta história só revela a ingenuidade do Marco. Tivesse ele dito: Sabe, eu sempre tive alguns problemas cronobiológicos. À hora da prova, infelizmente, o meu ritmo circadiano aconselhava-me a horizontalidade. Nos próximos Jogos, pela própria força das circunstâncias, as coisas serão bem melhores. Teria dito exactamente a mesma coisa, o Paulo Alexandre não teria percebido e até julgava que o Marco tinha obtido uma licenciatura no Programa Novas Oportunidades, O Vicente não o teria mandado regressar a Penates e o Marco teria podido emprestar o seu rasgadíssimo sorriso à festa que todos os atletas fizeram para apoiar Nelson Évora.
O Bengalão leu que "a marca Nelson Évora" vale agora 15 milhões de Euros. E que Vanessa Fernandes "gera receitas publicitárias acima dos 20 milhões". O Bengalão compreende que Marco Fortes gera muito menos receitas. Mas não lhe custa acreditar que um publicitário mais ousado, um dia destes, lance uma campanha nestes termos:
Se o seu ideal para uma manhã de domingo é, como o Nelson Évora, pôr-se aos pinchos no Estádio Universitário desde as sete da manhã, este anúncio não é para si. Mas se, como o Marco Fortes, gosta de estar na caminha até às onze da manhã, não se esqueça. Seja como o Marco! Com Colchões Molox, na caminha é um descanso!
E o Marco havia de meter uns trocos ao bolso.

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