terça-feira, 8 de abril de 2008

Jeito para línguas

Havia em Coimbra, no tempo em que O Bengalão por lá andou, um homem que foi um autêntico percursor dos guias turísticos. Era o Sébié. O Sébié, numa altura em que a maioria dos que nos visitavam eram franceses, e os outros passavam a sê-lo, que remédio, procurava os grupos de turistas, apontava para um monumento e, carregando nos EE, debitava: Univérsité, Sé Bié (O Bengalão não sabe como ele se referia à Sé Nova). O Bengalão espera que tu, Leitor, aprecies devidamente o tacto com que te informou de que Sé Bié queria dizer Sé Velha. Vem isto a propósito de um dos mitos mais arreigados na culpura portuguesa, o mito de que temos jeito para línguas. Nós, que só temos fronteira com a Espanha, a famosa raia que a parta, vemos os Espanhóis, que acham que o centro do mundo é Madrid e, por isso, não estão para falar outras línguas e convencemo-nos de que somos uns génios, uma espécie de finlandeses que falam todos outra língua porque ninguém compreende a deles. A verdade é que os portugueses têm um certo jeito para imitar sons e, portanto, conseguem dar uma impressão quase convincente, quando os ouvimos de longe e sem muita atenção, de que falam bem seja o que fôr. Mas, salvo as honrosas excepções do costume, está longe de ser verdade. O caso mais flagrante, nos dias de hoje, é o do Inglês. Qualquer bicho careta, munido do canudo da Licenciatura pela Universidade Independente, balbucia meia dúzia de inanidades monossilábicas e entarameladas, entremeadas com uma ou duas palavras mais compridas que aprendeu no Finantial Times (eles dizem FT, e nós quase os vemos a piscarem o olho numa familiaridade intolerável) e julga que está a falar Inglês. Quando é ministro e vai a Bruxelas às reuniões do Conselho, encontra-se com outros cromos, todos a dizerem yes, yes, e vem de lá convencido de que é um estadista de craveira internacional (é assim que eles falam, são todos de craveira).



Mas o caso mais grave está longe de ser o Inglês. Há em Portugal quem saiba Inglês. Ninguém estranha se um jovem, mesmo dos mais velhos, disser que vai para o British Council aprender Inglês. E, se muita gente que julga que sabe Inglês se limita a parecer ainda mais ignorante quando tenta mostrar as suas habilidades do que já é em vernáculo, a verdade é que há muita e boa gente que conhece a língua de Marlowe (por que é que há-de ser sempre a língua de Shakespeare?). O caso mais grave é mesmo o do Espanhol. É uma das línguas mais faladas do mundo, é a língua do país com que temos mais relações comerciais e, no entanto, muito poucas pessoas em Portugal a conhecem razoavelmente. Todos os Portugueses pensam que sabem Espanhol. Na Beira, há uma canção popular que parece ter sido feita para Mário Soares e outros extraordinários hispanohablantes da nossa praça, e que diz o seguinte:




Entrei pela Espanha adentro


Ai, a cavalo num burrito


E os Espanhóis me disseram


Ai que cavaleiro tão bonito



Vá de binga, binga, binga, binga,


Vá de binga, binga, binga, binga,


Já sei falar à espanhola, olé y usted


y olé




Vem este momento de poesia a propósito de uma coisa que O Bengalão ouviu hoje no Telejornal. Estavam a dizer que o Presidente do Governo espanhol, nas Cortes, tinha prometido maior severidade na luta contra a violência doméstica, e mostraram o Zapatero, com legendas e tudo, a dizer o seguinte: "Qualquer cobarde que ouse levantar a mão para uma mulher deve saber que tem diante de si, não uma vítima indefesa, mas 40 milhões de cidadãos prontos a..." E aqui é que a porca torceu o rabo. O que o Zapatero disse foi "...plantearles cara", ou seja, "a enfrentá-los". O que o tradutor escreveu foi "...partir-lhes a cara". Ou seja, porque não sabe Espanhol, o distinto escrevinhador não percebeu. Porque não é tradutor, não se deu conta de que o Presidente do Governo espanhol, numa sessão das Cortes, não ameaça ninguém de lhe ir às fuças. Porque não é honesto, inventou.




Não se pense que é caso único. As traduções literárias que, em Portugal, vão do muito bom (raro, mas existente) ao muito mau, sem passar pelo razoável, são particularmente más no caso do Espanhol. A grande maioria dos portugueses, no tempo em que estava mais na moda do que hoje a novela hispânica sul-americana, nunca leram Garcia Marquez ou Vargas Llosa. Leram sucedâneos canhestros, mal alinhavados e postos em língua de trapos pelos primos, amigos, amantes ou outra coisa qualquer de editores quase tão ignorantes como eles, que tinham ido duas vezes a Badajoz e, Ai que cavaleiro tão bonito, já sabiam falar à espanhola.
E é confrangedor, de cada vez que a RTP manda um enviado especial a Espanha, ou um repórter entrevistar um ciclista da Volta a Portugal, ver aqueles néscios a aproveitar cada cheirinho de S para falarem como se fossem belfos (ou seja, como se fosse um Z espanhol) e pensarem que estão a fazer uma grande figura.
Porque é que a RTP, que é nossa, não faz duas coisas muito simples: em primeiro lugar, contratar tradutores para fazerem traduções e, em segundo, dar formação profissional aos seus fncionários, inscrevendo alguns deles num curso de língua e cultura espanhola? O Instituto Cervantes é excelente e não é caro. E escusavam de andar a fazer triste figura em casa dos vizinhos.

Sem comentários: