O Bengalão confessa que é um espectador atento dos debates parlamentares. Há uma cadeia de televisão, incluida no pacote de canais que o Bengalão recebe, que transmite, alternadamente (não, a palavra não vem de alterne), os debates da Assembleia da República e os dislates de um bufarinheiro que vende uns produtos à base de plantas e que curam tudo, da eriplsela ao cancro da mama. Imagine-se o que o Bengalão poderia agora dizer, aproveitando esta proximidade digital, para diminuir ainda, se possível, a imagem dos nossos representantes. Mas o Bengalão é um homem sério, não cede à facilidade nem é um demagogo barato. Conhece até pessoas que são o exacto oposto disso. São os nossos caros demagogos. Mas não, o Bengalão não vai aproveitar a oportunidade de ... Não, não vai mesmo.
Não se estranhe, assim, que o Bengalão tenha já assistido, e por várias vezes, às actuações públicas do Senhor Ministro da Saúde. O Bengalão, fino observador, reparou que Sua Excelência, quando responde a uma pergunta, arvora um sorrizinho, que aliás é semelhante ao da D. Lurdes, que lhe recorda o nome por que ficou conhecido em França um primeiro ministro da República, Edouard Baladur: Sa Courtoise Suffisance Balamou I. Deve ser do excesso de informação. O Bengalão confessa que não sabe.
Como estamos em maré de confissões, o Bengalão confessa ainda que não tem a formação necessária para julgar a justeza das medidas do Ministro da Saúde. O Bengalão não faz a mínima ideia do número de intervenções de urgência necessárias para que um urgentista esteja em forma, nem do número de partos precisos para que um obstetra se porte, na altura do nascimento de mais um cidadão, como o Cristiano Ronaldo em Manchester.
O Bengalão não sabe. E, como não sabe, não fala disso, para não ser condenado a ouvir, para o resto da sua vida, os Concertos para violino do Chopin, como aconteceu há uns anos a um Ministro da Cultura, actual assessor jurídico de uma empresa pública e titular de outros cargos sumarentos. Mas há coisas que o Bengalão sabe. O Bengalão sabe, por exemplo, que, se se quiser atrair pessoas para o interior, é necessário não esbulhar completamente a região dos serviços mínimos que a podem tornar atraente. O Bengalão sabe que, na época em que os partos se faziam com a ajuda de Deus e das tias solteiras, na mesma cama em que os filhos foram feitos, o aparecimento de uma parteira sem experiência salvou muitas vidas. O Bengalão sabe também que quem não tem cão caça com gato e que quem tiver muita fome até de furão faz. Ou seja, o Bengalão, ignorante como é, tem pelo menos aquilo a que o Ingenhêro, se soubesse Inglês, chamaria a sua pitadazinha de horse-sense.
O Senhor Ministro da Saúde, que sabe muitas coisas, não sabe isto. O Senhor Ministro da Saúde sabe muito, principalmente números. De cada vez que alguém lhe diz alguma coisa, o Senhor Ministro responde com números. Ó Senhor Ministro, então o caso daquele idoso...? Nem o deixa acabar. 327, fulmina-o. E o encerramento do SAP da Anadia? 423, diz ele. E as ambulâncias? 89745, dispara o Ministro. E cada audição de Sua Excelência parece um concurso de cauteleiros. E nós continuamos a esperar que nos saia a Sorte Grande.
Os casos recentes de Trás-os-Montes mostram bem o que se passa. Encerradas as urgências, foram substituidas por um esquema de transportes em meios que dependem da gravidade que é determinada por telefone, nem sempre por um médico. O doente é transportado a uma distância que chega a ultrapassar os 50 km. O Senhar Ministro da Saúde, que nunca andou pelas estradas secundárias de Alijó no inverno, garante que ninguém está a mais de 1 hora de Vila Real. Santa Ignorância! Mais. O Senhor Ministro garantiu que estava tudo preparado. Mas o Senhor Ministro contava com os Bombeiros Voluntários e com a sua preparação. Contava com ela, sublinhe-se. Não lhes deu formação, não informou as respectivas direcções de quem era responsável pelo gasóleo e pela manutenção das ambulâncias. Nem pensou que era natural que, à noite, estivesse apenas um Bombeiro de serviço, não necessariamente com formação na área das urgências. E não pensou porque o negócio dele é números. Quer dizer, o Bengalão, que é bem educado, não dirá que o Senhor Ministro, quando disse que estava tudo preparado, mentiu. Dirá antes , como diria o Ingenhêro se soubesse Inglês, que ele usou de economy with the truth.
Ainda estes casos estavam frescos, foi posto na rua de um hospital um idoso que se queixava, provavelmente, de uma cólica renal. O seu estado de debilidade saltava aos olhos do motorista de taxi. E aquele Senhor estava nu. Nu. Não foi tratado. Foi humilhado. Foi obrigado a atravessar a rua em que morava despido, mal coberto pelo xaile da mulher. Umas horas depois, foi de novo levado ao hospital e morreu. Ninguém se demitiu. O Senhor Ministro ofendeu-nos com números, quando foi interrogado. Nas últimas intervenções públicas de Sua Excelência, tem ele repetido, várias vezes, a expressão "ente querido", como se diz na frieza das notícias necrológicas. O que o Senhor Ministro não aprendeu foi a pedir desculpa. Em nosso nome. De todos nós, que deixámos, no século XXI, um Homem morrer, aos 75 anos, nu, sob os olhos espantados da companheira, em nome da eficiência. Nós. Que não nos escandalizamos. Que não chamamos os bois pelos nomes. Que não dizemos ao Senhor Ministro que ele sabe muito. Muitos números. Pode ser um excelente assessor, de alguém que saiba menos de números e mais de pessoas. Para Ministro não serve. Ministro quer dizer Servidor. E Sua Cortês Suficiência tem demasiadas certezas para estar ao nosso serviço.
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