sábado, 23 de fevereiro de 2008

Hilotas, periecos e penestas

O Bengalão anda preocupado. Aparentemente, tem razões para isso, porque há outros que também o andam. O relatório da SEDES é um exemplo disso. A SEDES anda muito preocupada porque os Portugueses, diz a SEDES, parecem viver num clima de tensão social difusa, que pode levar ao desequilíbrio social e mesmo a focos de revolta que não auguram nada de bom. O Vitalino veio logo dizer que a SEDES estava a exagerar, que a situação não era tão má como a SEDES a pintava, que eram, afinal dores de parto de um conjunto de reformas que fará de Portugal uma mistura de Irlanda e Finlândia, com todos os portugueses a embebedarem-se ao sábado com Guiness e marjavotka, ao som de harpas e tambores de design moderno e cristalino.
O PR veio logo dizer que também ele estava preocupado, que também ele já tinha referido alguns dos temas abordados pelas SEDES.
Há assim razões para o Bengalão estar preocupado. O Bengalão acordou no entanto com a estranha sensação de que não estava preocupado com as mesmas coisas. Que a SEDES, o PR, o Vitalino, o Luís Filipe, o Ingenhêro, o Paulinho, o Tio Belmiro, o Pensador Marcelo estão preocupados com a revolta surda como o início de um terramoto que todos ouvimos. O Bengalão preocupa-se com as razões dessa revolta.
E parece ao Bengalão que algumas coisas são visíveis. Um exemplo: O PR, o mais alto magistrado da Nação, parece muito preocupado com o futuro do Estado-Previdência. Várias vezes falou nisso. E disse, com razão, que as futuras pensões podem estar em risco. Que numa sociedade em que se vive até aos oitenta anos, não se pode trabalhar até aos cinquenta. Que, por isso, é necessário aumentar o tempo de quotização. Em tudo isto o PR tem razão. Mas, para si próprio, ele não vê qualquer problema em acumular, para além do seu vencimento de PR, TRÊS pensões, pagas directa ou indirectamente pelo Estado, para nenhuma das quais trabalhou mais do que 10, no máximo 15 anos.
O Sr. Bagão Félix tornou-se famoso por, imediatamente antes de mudar as leis da aposentação da Função Pública, fazendo perder aos funcionários alguns direitos (e possivelmente com muita razão), se ter reformado a tempo de lhe não aplicar a Lei que ele achava indispensável.
Os Senhores Deputados, que acham que nós devemos trabalhar mais para ganharmos menos, acham que eles devem trabalhar menos para ganharem mais. O Governador do Banco de Portugal, que defende a moderação salarial, não tem vergonha de se abotoar com o nosso dinheiro num salário e outra contrapartidas que são escandalosas. O Sr. Ministro das Finanças defende a triplicação do salário do gestor de uma Empresa Pública, dizendo que, se queremos bons gestores, temos de lhes pagar bem (na realidade, o Sr. Ministro teve um lapso interessante, ao dizer operários e trabalhadores em vez de gestores, mas depressa rectificou), o que mostra que, na opinião do Senhor Ministro não são precisos bons operários e trabalhadores, e por isso defende para eles salários baixíssimos, sob pena das maiores catástrofes, mas apenas bons gestores que, apesar de serem dos mais bem pagos da Europa, não conseguem desenvolver o país.
Os dirigentes das grandes empresas acham que qualquer reivindicação salarial leva o país para o abismo, mas, nas suas versões mais sofisticadas, perdoam aos filhos, roubando os accionistas, empréstimos de milhões de euros, e, nas versões mais grosseiras, gastam em Ferraris o que devia ser reinvestido.
Todas estas pessoas têm uma coisa em comum. Eles acham mesmo que são diferentes dos outros, que as regras que se aplicam às pessoas comuns não se lhes aplicam. É difícil falar com uma destas pessoas sem ela defender os valores do patriotismo, da Nação, da Portugalidade, como alguns ainda dizem. Mas basta alguém reclamar que o salário mínimo suba para um nível mais digno para que eles ameacem abandonar o país com o seu dinheiro para investirem noutro país qualquer, esquecendo-se de que nenhum deles conseguiu alguma vez o mínimo êxito, a não ser noutas repúblicas das bananas, onde se pode fugir aos impostos, sonegar informação às autoridades, corromper quem decide e, sobretudo, onde a justiça não funcione. On seja, noutros Portugais.
Esta gente pensa mesmo que é diferente. E que nós, se não somos escravos, não somos também cidadãos, somos uma espécie de hilotas, como em Esparta. Podemos até dizer que Portugal se compõe hoje de uns milhares de VIP's, que têm direito a tudo, e muitos milhões de hilotas, periecos (que são os hilotas de Loures, da Amadora, de Matosinhos e da Maia) e penestas (hilotas das Outras Bandas, dos Algarves de além Douro e além Tejo).
O Bengalão não tem solução para isto. O Bengalão não conhece melhor sistema do que a democracia representativa. Mas parece-lhe que a constituição de grupos de cidadãos à volta de alguns temas e a utilização de algumas formas de acção colectiva poderiam assustar S. Bento e outros milagreiros. Já deu resultado noutros sítios. Por exemplo: dada a maneira escandalosa como o BCP tem vindo a ser dirigido, com prejuízo claro de pequenos aforradores e depositantes, quer tal boicotar o BCP?

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