quarta-feira, 21 de maio de 2008

Tripeiros e Alfacinhas

Alguns amigos, depois de lerem o que O Bengalão disse sobre António Barreto, acusam O Bengalão de ser um periculosíssimo centralizador, que é o mais novo dos mimos com que se ataca quem age como se Portugal fosse Lisboa e o resto paisagem. Pois tu, Bengalão, tu cujas raízes mergulham fundo nos granitos da Guarda, tu, glorioso fundador da Frente de Libertação da Egitânea, tu, Bengalão, és contra a regionalização? E atiram-se a O Bengalão com todo o vigor destas rimas explosivas. Ora O Bengalão quer deixar claro que não é contra a regionalização. Também não é a favor, aliás. A regionalização não é, não pode ser, um fim em si. É um meio. O Bengalão confessa que partilha alguns dos objectivos de que a regionalização pode ser ferramenta fundamental. Mas as ferramentas podem ser usadas para coisas muito diferentes. A sachola com que o camponês de Júlio Diniz lavrava amorosamente a terra era também usada em Miguel Torga para resolver, de maneira brutal mas eficaz, alguns diferendos de águas. Não temos nós a prova disto em Portugal? A regionalização portuguesa produziu duas realidades distintas, e a diferença entre as duas regiões autónomas não tem nada a ver com os partidos que as governam. O Bengalão distingue bem a boçalidade gorda do Senhor Jardim da secura monacal do Senhor Mota Amaral (a propósito, conte-se que O Bengalão teve a oportunidade de cumprimentar, em ocasiões diferentes, os dois Presidentes. Nas breves palavras de circunstância que trocou com cada um deles, o Senhor Jardim revelou-se amável e urbano, e o Senhor Mota Amaral foi simplesmente malcriado. As aparências enganam). Segue-se portanto que O Bengalão, antes de responder à pergunta: és a favor ou contra a regionalização, procura responder às seguintes, que se lhe antecedem: regionalização para quê? Sou a favor ou contra esse objectivo? Há ou não há outras maneiras de o atingir? Quais dessas maneiras têm menos efeitos colaterais negativos? Quanto custa cada um desses caminhos? Depois de responder a estas perguntas, O Bengalão saberá se é a favor ou contra, naquele momento e para aquele fim, daquela regionalização concreta.
Há no Porto, que é uma cidade cosmopolita e civilizada, um grupo de populistas que, incapazes, ignaros, sem memória nem cultura nem inteligência, passam a vida a queixar-se de Lisboa. Luís Filipe é um bom exemplo disso. Disse a Luminária de Gaia que foi derrubado da cadeira do poder porque é um homem do Norte. Quando toda a gente sabe que, para Luís Filipe chegar ao poder, derrubou um homem de Vila Nova de Famalicão para quem Luís Filipe, que vinha de Gaia, era quase um Mouro. Estes populistas baseiam o seu discurso em dois pressupostos: Que, abaixo do Mondego, só há Mouros; que, para um Alfacinha, Portugal é só Lisboa e o resto é paisagem. O Bengalão procurará desmontar hoje o segundo destes pressupostos. Quanto ao primeiro, O Bengalão está a realizar uma investigação científica, séria, profunda, aturada e exaustiva, que começou hoje ao pequeno almoço e terminará dentro de cinco minutos, à hora da pausa do café, o que lhe permitirá, ainda hoje, iluminar a tua inteligência, Leitor.
A afirmação, tantas vezes repetida, de que, para um Alfacinha, Portugal é só Lisboa e o resto é paisagem é falsa e resulta de uma profundíssima ignorância das volutas do cérebro do Lisboeta. A visão do mundo do Alfacinha, a sua Weltanschauung, como diria o Ingenhêro se fosse capaz de ler um livro do Carrilho até ao fim sem adormecer, é muito mais complexa do que o preconceito tripeiro deixa perceber. O Bengalão, observador atento, começou a notar isto quando reparou que todos os seus amigos alfacinhas consideravam que ele vinha do Norte. Vocês, lá no Norte... Então quando voltas para o Norte? O Bengalão, depois de os esclarecer, como era seu dever, Você, na minha terra, é um burro, bem tentava explicar que não, que a Guarda não é no Norte, chegando mesmo, sendo, como é, um monstro de sensatez, a tentar explicar que num país em que as assimetrias são mais na longitude do que na latitude, fazia mais sentido perguntar a O Bengalão, Então quando voltas para o Leste? do que repetir a pergunta sacramental. O Bengalão chegou mesmo a atitudes extremas e, de há uns anos a esta parte, quando um Alfacinha lhe pergunta, Então de onde és?, O Bengalão responde, provocador, Sou da Guarda, província de Salamanca. O Alfacinha não tuge nem muge. Nada surpreende um Alfacinha. E diz, Ai sim? Que giro! Então quando voltas para o Norte? Procurou O Bengalão compreender as razões profundas deste comportamento e as conclusões a que chegou abrem, passe a imodéstia, caminhos absolutamente novos para abarcarmos toda a complexidade da visão que o Alfacinha tem do mundo.
Vejamos, então. Para o Alfacinha, o mundo divide-se em três partes, ou, como diria o Ingenhêro se tivesse lido os seus clássicos, omnis terra divisa est in partes tres, a saber: o Estrangeiro, a Praia, e Este País. O Estrangeiro é um sítio que pode ser muito bonito, mas vê lá se eles têm lá melhor do que esta merda. Esta merda pode ser quase tudo, do queijo da Serra ao Nuno Gomes, dos pastéis de Belém à Mariza, dos caracóis da Graça à Soraia Chaves. O Estrangeiro localiza-se em Badajoz. A Praia divide-se em duas partes, a saber, o Allgarve, onde o Alfacinha passa os fins de semana, e o Brasil, onde passa férias. O Alfacinha não passa fins de semana no Brasil porque é longe e vai lá passar férias porque ali, ao menos, fala-se Português.
Este País divide-se em três partes: A Lisboa-Mor, a Outra Banda e o Norte. A Lisboa-Mor é formada por três anéis. O central, Lisboa, é constituído por quatro praças, a Praça do Município, o Terreiro do Paço, o Rossio e os Restauradores. Em Lisboa não vive ninguém. À volta de Lisboa, nos bairros periféricos de Alfama, Mouraria, Bairro Alto, etc., vivem os Alfacinhas. Estes bairros, junto com Lisboa, formam a Grande Lisboa. A região à volta da Grande Lisboa, e que com esta forma a Lisboa-Mor, divide-se também em três partes: as Quintas, onde dantes o Alfacinha ia fazer pic-nics e agora já não vai porque Que horror, não há pachorra, Sintra que, como sabem todos os Alfacinhas, é a terra mais bonita do mundo, onde dantes o Alfacinha ia às Espanholas e agora não vai porque, como é do conhecimento de qualquer Alfacinha, o IC 19 é a rodovia mais congestionada do mundo e o Alfacinha não gosta de andar de comboio, e a Linha do Estoril, que vai da Madragoa à Praia do Abano, onde dantes o Alfacinha ia à praia e agora vai comer feijoada de gambas. A Outra Banda divide-se em duas partes, o Alentejo, donde dantes o Alfacinha importava coentros, migas e mulheres a dias e agora não sabe para que serve, e o Deserto, onde não há Escolas, nem Hospitais, nem Estradas, onde dantes o Alfacinha ia comer caldeirada e olhar para Lisboa e agora não vai porque a zona foi desactivada pelo Ministro Jamé. O resto d’Este País chama-se O Norte. Já foste àquela tasca de Campo de Ourique, o Curral da Mula? Come-se lá um cozido, pá... E, depois, em voz sussurrada e segredante, O dono é do Norte, e manda vir de lá o enchido todo... O Norte é, assim, o País mítico donde vêm as chouriças.
E pronto. O Bengalão espera ter destruído, definitivamente, a atoarda segundo a qual, para o Alfacinha, para além de Lisboa, só há a paisagem.

1 comentário:

com senso disse...

O Bengalão diz, como sempre, algo de muito correcto. A regionalização é um meio, não um fim!
Um meio cuja utilidade e bondade já questionei, mas que a pouco e pouco, venho a considerar como algo que pode ser eficaz, para se conseguir um desenvolvimento mais equilibrado do País.