sábado, 15 de março de 2008

Greve da Função Pública

Parece que a Função Pública esteve em greve. O Bengalão diz parece, porque, ausente no estrangeiro, só soube do que se passou pela comunicação social. Ora que diz a comunicação social? Diz esta coisa espantosa: que o Governo afirma que a adesão à greve foi de 5,3% e que os Sindicatos informam que 70% dos trabalhadores participaram no movimento. E, sobre a taxa de participação, mais não disse a comunicação social. Estás tu, Leitor, a perguntar-te como é que o Bengalão, este cultor da precisão da linguagem, diz que esta situação é espantosa. Espantoso, que os Sindicatos asseverem que foram 70% os participantes? Espantoso, que o Governo jure que foram apenas 5%? Espantoso? Oh, Bengalão, que inocência!
Pois não faças juízos precipitados, Leitor, porque, nestas notícias, outra coisa há de mor espanto, como diria o Vate. (Não, Ingenhêro, não é a VAT, pergunta ao Carrilho, ele conhece). A primeira coisa que pode parecer espantosa é a diferença entre os números. Não é, no entanto, de estranhar. Tanto os Sindicatos como o Governo, ao indicarem um número, fazem-no apenas como o vendedor de tapetes faz ao turista que cruza as suas arenosas plagas. Quando lhe pede 20000 piastras pelo tapete, o custo de produção, os custos agregados, as margens de lucro, a internalização de factores externos, tudo isso é absolutamente irrelevante. A única coisa que conta é a seguinte: o mercador observa, com um olho semicerrado e escondido atrás da barba pujante, a cara do promitente comprador e, murmura, de si para consigo, na puridade do seu peito tratado a tâmaras e tempestades de areia: quanto é que este infiel é capaz de esportular para ficar com esta merda? E pede o dobro. Assim fazem os Sindicatos e o Governo. O Bengalão, com todo o cinismo de que é capaz o espírito científico, conhece bem o princípio da Rasoira de Occam. E sabe, portanto, que nenhum deles diz a verdade. E que esta se situa algures, entre uma cifra e outra.
Há outra coisa que o Bengalão sabe. Ao ouvir o porta-voz do Governo responder aos jornalistas sobre a adesão à greve, não conseguiu o Bengalão deixar de pensar nos magníficos beduínos das histórias de Tintin. Quando o turista lhes pergunta quanto custa o tapete, eles puxam de sob a jilaba encardida, de números sobre tudo, os filhos incontáveis, as mulheres que o Profeta permite, a velha mãe cega, viúva e faminta, o aumento do preço da alimentação dos camelos, os custos da globalização e a última visita da Al-asai. Tudo, menos o custo do tapete. Assim fez o porta-voz do Governo. À pergunta simples: qual foi a adesão à greve, ele respondeu com números sobre tudo, sobre a quantidade de hospitais encerrados, sobre o número de guichets da Segurança Social que estavam a funcionar, sobre quantos gabinetes ministeriais continuaram a produzir furiosas reformas, sobre tudo menos a adesão à greve.
A matemática tem destas coisas. O Bengalão explica devagarinho, como se o Leitor fosse Licenciado pela Universidade Independente. Em casa do Bengalão, o jantar é normalmente a dois. Um faz o arroz, o outro frita os carapaus, um vai lavando a loiça, o outro limpa-a, enquanto vão ambos pondo a mesa e discorrendo sobre coisas interessantes. Imagine-se que, um dia, o Bengalão faz greve à cozinha. Das razões que o Bengalão tem ou não tem para esta acção reivindicativa nada saberás, Leitor, que a boca do Bengalão é um túmulo. Mas faz greve. A cozinha funciona, nesse, dia, com metade dos seus trabalhadores. Lá se fritam os carapaus, o arrozito sai, talvez o sorriso não seja tão bonito como costuma, mas a cozinha funciona. Qual é a taxa de adesão à greve? O Bengalão responde e o Ingenhêro pode assinar por cima: 50%. Na cozinha do Bengalão trabalham dois, um fez greve, o outro não (e ainda bem, que o Bengalão é de muito alimento), metade aderiu, quem diz metade diz 50%. Qual seria a resposta do porta-voz? Seria simples. Que 100% das cozinhas tinha funcionado. Logo, que a adesão tinha sido de 0 (zero) por cento.
Conta-se na Beira que havia um homem que todas as noites, depois da ceia, punha o chapéu e saía, mesmo quando o tempo estava mais para o borralhento do que para o luarento. A mulher, por vezes, quase por desfastio, perguntava-lhe: E tu, para onde vais, homem, nesta noite de lobos e neve buraqueira? O Homem respondia, invariavelmente e com um sorriso nos lábios: Ora lá, vou ter com a minha amante!
Só vinte anos depois a mulher descobriu que era verdade, que isto de nas terras pequenas tudo se saber foi uma mentira que nós, os de lá, inventámos para enganar os Lisboetas.
Foi isto que fez o porta-voz. Com a verdade nos enganou.
O Bengalão é o primeiro a reconhecer que a conversa vai longa e ainda o Leitor não descortinou motivo de espanto. Pois não disse o Bengalão que havia uma coisa espantosa? E onde está o espanto? Em que o Governo minta? Será lá a primeira vez? Então não disse o Governo que... e depois foi-se ver e...? (Aqui o Bengalão deixa à rua consideração a escolha dos exemplos que são muitos e variados). Donde vem o espanto do Bengalão?
Já devias ter aprendido, Leitor, a estar mais atento ao que diz o Bengalão. O Bengalão repete o que disse, exacta e precisamente: Ora que diz a comunicação social? Diz esta coisa espantosa: que o Governo afirma que a adesão à greve foi de 5,3% e que os Sindicatos informam que 70% dos trabalhadores participaram no movimento. E, sobre a taxa de participação, mais não disse a comunicação social. O Bengalão já teve ocasião de te dizer, Leitor, que o homem avisado está mais atento ao que se não diz do que ao que é dito. Que o Governo tenha mentido não causa espanto ao Bengalão. E os Sindicatos, e os Sindicatos, pergunta o Padre Miguel Sousa Tavares ou outro Savonarola de serviço? O Bengalão reponde que não tem nada com isso. Os Sindicatos mentem ao Bengalão? Talvez, e depois? Os Sindicatos são associações privadas, constituidas para defenderem os interesses sectoriais dos seus membros, o Bengalão não é membro de nenhum Sindicato, nem sequer tem a honra (e o proveito duvidoso) de pertencer à Função Pública portuguesa e, portanto, se este Sindicato lhe mentir, o Bengalão limitar-se-á a não o convidar lá para casa nem para com ele tomar café na Benard. Temos assim, pois, que a afirmação dos Sindicatos deixam o Bengalão de mármore, como a Lurdinhas. Não lhe causa nenhum espanto.
O que causa o espanto do Bengalão (por falar nisso, O Bengalão ouviu no outro dia um debate sobre o momentosíssimo assunto do regime, monárquico ou republicano, que Portugal devia ter e decidiu que, a partir de hoje, vai passar a escrever o seu nome com mais respeito e nobreza. Assim mesmo, O Bengalão com maiúscula no artigo), o que causa então o espanto d'O Bengalão?
Pois, caro Leitor, é a última frase citada: E, sobre a taxa de participação, mais não disse a comunicação social. A comunicação social, sobre a taxa de participação na greve, limitou-se a repetir o que disseram Sindicatos e Governo.
Ora, só alguém muito mais ingénuo do que O Bengalão pensaria que a comunicação social o fez porque achou que um dos números era verdadeiro ou por não ter outras maneiras, mesmo penosas, de verificar a verdade. O Bengalão não acredita que, neste país em que floresce a abóbora e o Marcello pensa, neste país em que pululam Miguéis, e Vascos, e Sousas, e Pulidos, e Tavares e Valentes, neste país em que, por trás de cada jornalista de caneta embotada e monco caído, transparece, magnificamente, o olhar agudo e fino de um romancista genial, a comunicação social, ao acentuar, com o seu silêncio gritante, a diferença dos números, tenha querido outra coisa que não fosse dizer-nos tão-só e gloriosamente, a diferença dos números. Ou seja, a notícia que a comunicação social quis publicar foi, não o número de adesões, mas a diferença entre as afirmações do Governo e dos Sindicatos.
Tem a comunicação social o direito de dar esta informação? Claro que sim. Tem a comunicação social o dever de procurar também dar a outra? É a contrapartida da liberdade de imprensa. Uma comunicação social que não procura informar não merece existir. Qual é então razão da atitude da comunicação social? Pois, caro Leitor, é o vil metal. Os jornais vendem mais exemplares, as estações de televisão e rádio mais espaço publicitário se, em vez de noticiarem a verdade proba e lhana, noticiarem o abismo, a fossa, o Mindanau que separa as duas posições.
Só que O Bengalão, que paga o Governo, e que paga também a estes trabalhadores concretos, tem o direito de saber a verdade. Ou pelo, menos de que os seus empregados que ocupam as transitórias cadeiras do poder executivo, não lhe mintam. Que lhe digam, de olhos baixos e de chapéu na mão: Pois, Patrãozinho, não sabemos, as contas são difíceis, o choque tecnológico ainda não deu os seus frutos, os Serviços dos Ministérios, como não são alunos do décimo ano nem Professores, graças a Deus, ainda não têm computadores, pois o Patrãozinho há-de perceber e desculpar. Isto diria o Governo, se o Ingenhêro não tivesse faltado às aulas da catequese. E O Bengalão, magnânimo, perdoaria.
Ora O Bengalão tem uma solução para esta problemática. (Deve ser esta uma das poucas vezes em que a palavra problemática, como substantivo, foi usada por escrito no seu verdadeiro sentido). E uma solução moderna, que diz O Bengalão, pós-moderna. Com uma parceria público-privado, com externalização funcional e tudo. Não se admirava O Bengalão se, depois deste texto, recebesse um SMS do Ingenhêro a perguntar: Que pasta prefere Vossa Excelência? Na próxima remodelação é sua. (E a Excelência seria a d'O Bengalão).
Resumamos os problemas:
1-O Bengalão tem o direito de ser informado sobre a taxa da adesão à greve;
2-O Governo mente-lhe;
3-Os Sindicatos mentem-lhe;
4-A comunicação social não lhe diz a verdade.
5-A comunicação social ganha dinheiro com este exercício.
A solução é simples e elegante. Estabeleça-se uma Fundação, um Observatório da Adesão aos Movimentos Grevistas. Para a Presidência do Conselho de Administração, convide-se uma personalidade de reconhecida probidade e independência, por exemplo o Dr. Vitalino Canas. (No fundo, se há tantas fundações dirigidas por vitalinas, porque não uma dirigida por um Vitalino?). Esta Fundação encarregar-se-ia de fazer, à mínima greve, as investigações necessárias para determinar a taxa de adesão. Entretanto, os jornais, as televisões, os rádios, o próprio Marcello, tornariam públicos números, todos falsos, cada um mais fantasioso do que o outro, dizendo O Público, por exemplo, na primeira página: Sindicatos referem taxa de adesão recorde de 121%. Governo confirma que até os grevistas fizeram serão.
A Fundação calcularia, entretanto, a subida de audiências ou de tiragens produzidas por estas parangonas. E, desse valor acrescentado, 50% serviria para financiar a Fundação. Quem quisesse saber a verdade, O Bengalão, por exemplo, ia à página do Observatório na rede e obtinha o número. Sem espinhas.
A máquina de calcular, essa, seria paga com dinheiros do Quadro Comunitário de Apoio.

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