quarta-feira, 21 de maio de 2008

Mouros

Se leste o post anterior, caro Leitor, sabes que O Bengalão prometeu que te ia comunicar o resultado da sua exaustiva investigação sobre o mito, comum nas plagas nortenhas, de que os Mouros, em Portugal, vivem abaixo do Mondego, onde constituem a quase totalidade da população. O Bengalão procedeu, se bem te lembras, a uma investigação aturada, e exaustiva que demorou exactamente o tempo imenso que vai, na vida d'O Bengalão, entre o pequeno almoço e a primeira pausa para o café, ou seja, quase meia hora, estudo que incluiu até, imagine-se, a consulta atenta da obra Factos da História de Portugal, do Professor Hermano Saraiva, edição de bolso da Europa-América para a sua colecção O Riso é o Nada que é Tudo (Haverá humor em Portugal depois de José Vilhena?), dirigida por Manuel Maria Carrilho e distribuída gratuitamente nos Supermrcados Continente.
As conclusões a que O Bengalão chegou são claras e irrefutáveis. Além disso, dão ainda mais razão a'O Bengalão que, quando ouve falar de regionalização sem lhe dizerem como e para quê, pensa sempre que lhe querem ir ao bolso. A coisa é fácil de explicar e resume-se assim: na Guarda não há um museu subsidiado pelo Estado. Apesar de o Teatro Municipal da Guarda ter uma das melhores programações do País (se não acreditas, Leitor, vai ver, está tudo na rede), isso deve-se ao dinheiro dos habitantes da Guarda, pagos nos bilhetes e com o orçamento da Câmara Municipal, e ao empenhamento do Presidente da Câmara e do Vereador da Cultura, para além do trabalho, da persistência e da competência do Américo Rodrigues, a quem a Guarda muito deve. O Estado português não esportula um cêntimo. Na Guarda não há uma rede de transportes com subsídio estatal, apesar de, entre a estação do caminho de ferro e o centro da cidade mediarem 6 longuíssimos e íngremes quilómetros. Na Guarda, o Governo do Ingenhêro encerrou a Maternidade. Na Guarda, apesar de ser uma das regiões mais fustigada pelos fogos florestais, não há um corpo permanente de bombeiros profissionais, nem sequer um quartel de tropa macaca para ajudar os Voluntários que nos defendem. Na Guarda não há nada disto. Os impostos pagos pelos cidadãos da Guarda servem, entre outras coisas, para pagar o Teatro Nacional de D. Maria, e os Museus Nacionais todos, e o passe social dos Lisboetas, e a rede hospitalar da capital, e os Sapadores Bombeiros de Lisboa, e o resto que se sabe. Dir-se-á que é normal, todos os países têm uma capital e tem de se tratar a capital de modo a que esta sirva de atracção que beneficiará o país todo. O Bengalão não discutirá isto, apesar de não lhe parecer que o argumento justifique todo o dinheiro que a Guarda paga para que Lisboa viva melhor nem o dinheiro que Lisboa não paga para que a vida, na Guarda, seja menos dura. O Bengalão não discutirá isso. Tratará Lisboa como se esta fosse uma Senhora a que O Bengalão pôs casa, e que, de vez em quando visita. Quem não tem dinheiro não tem vícios e O Bengalão é um mãos largas.
Parece-te, Leitor, que O Bengalão ensandeceu de vez? Que estes argumentos, lógicos, sensatos, irrespondíveis, parecem ser mais a favor da regionalização do que contra ela? Estás enganado, Leitor, e já vais ver por quê.
Desde há uns anos, tem O Bengalão ouvido e lido personalidades conhecidas do Porto defenderem a regionalização nos seguintes termos: Portugueses somos nós, os de Lisboa são Mouros, se não fôssemos nós, ainda andavam todos de babuchas e a fazer salamaleques, daqui houve nome Portugal e, portanto, queremos o que é nosso. Uma região, o Norte, do Atlântico aos Urais de cá, que são em Trás-os-Montes, com a capital no Porto e que termine com este insulto à verdadeira fé e à pureza da grei.
Ora esta posição não tem qualquer respeito pela verdade histórica. Dizer que os Mouros estavam lá em baixo e que os Nortenhos vieram por aí abaixo conquistar a Mourama é um disparate. O Bengalão está em condições de afirmar, depois de aturado estudo, que o que se passou foi o seguite: Onde hoje é Portugal, antes do Judas perder as botas, antes mesmo de ser Presidente da Câmara de Cascais, vivíamos nós, os Celtiberos, em paz com as nossas ovelhas e as nossas montanhas. Fomos invadidos pelos romanos, mas estes, que eram decadentes, preferiram a praia aos Montes Hermínios e deixaram-nos em paz, com as nossas montanhas e as nossas ovelhas. Perdemos algumas terras, mesmo algumas gentes, mas, como as montanhas eram nossas, aceitámos tudo com guterriana resignação: É a vida... Uns séculos mais tarde, fomos atacados por dois grupos de bárbaros, uns vindos do Norte, outros do Sul, todos a tentarem convencer-nos de que possuiam a religião verdadeira e sabiam de que material era feito Deus. Nós, que sabíamos bem que de barro tínhamos criado deuses à nossa imagem e semelhança, todos fortes como as nossas montanhas e úberes como as nossas ovelhas, sorrimos e fomos indo mais para cima, para o mais alto dos Montes Hermínios. Godos e Mouros, assim se chamavam os bárbaros, guerreavam-se nas praias. Nós estávamos em paz com as nossas ovelhas e as nossas montanhas. Até que um dos bárbaros do Norte teve uma ideia luminosa. Aproveitando o facto de os dirigentes dos Mouros terem ido ao Algarve passar umas férias, veio por aí abaixo, tomou conta das terras até ao Mondego e, genial como só um bárbaro pode ser, levou toda a gente (todos os Mouros!) para cima, para o Norte, para que, quando os Chefes Mouros regressassem, não tivessem quem lhes preparasse o cuzcuz ou engomasse a jilaba. O bárbaro, Vímara Peres, chamou a isto nomes fortes e tão bárbaros como ele, a presúria e o ermamento. De modo que, na vasta região entre Douro e Mondego, só ficámos nós, em paz com as nossas montanhas e as nossas ovelhas, lá no cimo dos Montes Hermínios, onde não chegou a fúria vimaranense.
Parecer-te-á, caro Leitor, que esta versão dos factos se afasta ligeiramente da realidade. Mas esse é o Destino da História. No dia em que a História contasse a Verdade, com maiúscula, deixava de existir.
Sabe-se o resto. Sabe-se que nós, os verdadeiros Portugueses, fomos recuando e subindo cada vez mais. Sabe-se que hoje estamos confinados à cidade da Guarda, mais precisamente à freguesia de S. Vicente. Sabe-se que os Godos, incapazes de competir com os Mouros em termos de produtividade filhícola, se foram afogando no mar de Mouros que tinham trazido do Sul. E a situação é hoje esta: em Portugal há uns poucos milhares de verdadeiros portugueses, concentrados na freguesia de S. Vicente, na Guarda. O resto, tudo Mouros. O Luís Filipe, Mouro, o Pinto da Costa, Mouro, o António Barreto, Mouro, a Agustina Bessa Luís, Moura, todos Mouros, o Manoel de Oliveira, o Siza Vieira, o Rui Rio, a Deuladeu Martins, o Bispo do Porto, o Camilo Castelo Branco, o Sá Carneiro, o Pedro Burmester, o Vitor Baía e o Homem do Laço. Todos Mouros. Todos os Tripeiros, e os de Braga, e os de Viana, e os de Guimarães, e os de Amarante, todos os portugueses fora de São Vicente, todos, mas todos, Mouros. Com a notabilíssima excepção da minha amiga Vera, que é judia. O Bengalão conhece a Vera há muitos anos e, como diria o Ingenhêro se soubesse Inglês, sacrifica à deusa da coragem mais na ara das palavras do que no altar das acções. Nunca se atreveria, portanto a chamar Moura à sua amiga Vera.
Ora os verdadeiros Portugueses, que já têm de pagar os luxos mornos e sedosos da Cidade Branca, não vêem por que hão-de pagar também os luxos tersos e vigorosos da Cidade Negra. Para voltar à Senhora a que O Bengalão pôs casa, não quer O Bengalão pôr casa a outra. Faltam-lhe para isso vigor e cabedais.

2 comentários:

popeline disse...

Tudo isso é muito bonito, mas nao há qualquer referência ao centro do país e do mundo e vector de multiculturalidade. Zebreira, obviamente.

O Bengalão disse...

O Bengalão não esqueceu a Zebreira. Mas como pode um sensaborão armado apenas de bom senso falar sobre a Zebreira, terra de todos os excessos, Umbigo do Mundo, Paládio de todas as Artes, Elísio onde O Bengalão não chega? Não, não subirá O Bengalão acima do castão.